Margarita Astete de Ulloa: Romeu e Julieta nos Andes


Se Shakespeare tivesse vivido um pouco mais, teria a chance de ouvir falar da estória de Margarita Astete de Ulloa e ver quase concretizada uma de suas mais famosas peças dramáticas: Romeu e Julieta. Foi muito longe de Verona, não tinha exatamente duas famílias rivais e teve final feliz, mas mesmo assim tem todos os componentes de uma estória que o próprio "Bardo Inglês" poderia ter escrito.

Corriam os anos 20 do século 17, o local era a Villa Imperial de Potosí, hoje na Bolívia. A cidade, a mais de 4.000 mts de altitude, é ainda hoje uma das mais altas do mundo. Em Potosí o império espanhol tinha um dos seus maiores tesouros, as minas de prata da maior jazida que o mundo tinha visto até então. A cidade era riquíssima e teve uma sociedade muito sofisticada até o fim da mineração no século seguinte. No comando militar e político da cidade na época, encontramos nada menos que o "factor" Don Bartolomé Astete de Ulloa, e nossa personagem Margarita era sua filha natural (entre outros filhos que teve, uma vez que demorou muito a se casar oficialmente) e era possivelmente limeña.  Sua mãe, já falecida naquela época, chamou-se Luz, era procedente da Andaluzia e tinha aspecto sarraceno. Don Bartolomeu convivia estreitamente com  a comunidade dos bascos que ali viviam e prosperavam, para o inconformismo dos andaluzes,  extremeños, portugueses e outros cidadãos das demais origens do império espanhol. Os bascos se mantinham no poder e monopolizavam boa parte da riqueza, formando uma comunidade fechada. Apesar da necessária neutralidade que tinha que assumir, por ser uma autoridade real, Don Bartolomeu era inevitavelmente identificado como um basco por seu sobrenome e origem burgalesa.

Margarita era uma das mais formosas donzelas de Potosí, e a origem nobre de seu sobrenome aliada à riqueza e poder de seu pai a tornavam uma noiva muitíssimo cobiçada. Para descrevê-la nada melhor que citar versos de "Un rapto en el siglo XVII - Margarita" do poeta boliviano José David Berrios :

Razón tenían los galanes todos
De la opulenta Potosí en buscar,
Empleando afanosos diez mil modos,
Gimiendo y suspirando sin cesar,
El amor de la bella Margarita
Que es beldad prodigiosa, ¡vive Dios!
Razón tenían, dígolo, infinita
En ir rendidos de su amor en pos.
Son los catorce años más divinos
Que imaginarse pueden. Tales son
Sus gracias y atractivos, que mohinos
Quedan lenguaje y pobre inspiración.
Mas, echando un empuje de Poeta
Procuraré a la hermosa retratar;
Los colores preparo en la paleta,
Tomo el pincel.....y váisla ya a admirar.
Rostro oval por las gracias modelado,
Moreno y limpio el plácido color,
Ancha la frente y en redor rizado
Negrísimo cabello encantador;
Ojos divinos, por la suave ceja
Ornados, y de lánguido mirar,
Boca pequeña que coral semeja
Y que agracia bellísimo lunar.
Ebúrneo cuello, pecho delicioso,
Que pasmaran al ático escultor;
Esbelta, en fin, de aspecto tan gracioso,
Enciende a todos en intenso amor
Es Astete y Ulloa el apellido
Que anuncia su nobleza sin rival,
Y Don Bartolomé, su padre, ha sido
Estimado del Rey, como leal.
Vino a esta Villa el noble caballero
Con el empleo, honrado de Factor,
Y fué siempre, entre todos el primero
Por su bondad, su nombre y su valor.

  Aos 14 anos Margarita conheceu e passou a ser namorada do fidalgo Don Nicolás Ponce de León, que apesar de nobre não era basco. É preciso entender, antes de tudo, que namorados não eram reconhecidos como tal pelos idos de 1620. Eram relacionamentos furtivos, vistos muitas vezes com maus olhos pelas famílias. Os casamentos eram prioritariamente um assunto ligado aos negócios e alianças políticas das famílias poderosas. Em geral, somente os pobres, sem maiores interesses econômicos e políticos, é que se casavam com quem amavam. Ponce de León tinha 20 anos quando salvou Margarita de um acidente grave. Cavalgando por pura cortezia ao lado do pretendente Don Sancho de Mondragon, a quem suportava com dificuldade, Margarita certa vez perdeu a paciência e fustigou com mais força seu cavalo, que saiu em disparada. Mondragón ficou apenas em pânico e nada fez. Ao ver a moça em apuros, Ponce de León saltou para resgatá-la no exato momento em que ela e seu cavalo passavam por ele na praça central. O cavalo caiu em seguida, terminando por morrer, e Margarita, desmaiada, foi reanimada por aquele que seria o grande amor de sua vida. A partir de então, Nicolás e Margarita se tornam notórios enamorados, o que enche progressivamente de ódio a Mondragon, que nunca desistiu de assediar a moça. Desesperado pela situação, Mondragon que era muito rico e de familia basca resolve negociar com Don Barlomeu a mão de Margarita. O pai, pressionado pela lealdade que devia a seus conterrâneos e pela enorme riqueza de Mondragon, aceitou a oferta, considerando o afeto da filha pelo outro rapaz apenas um capricho juvenil. Ao ouvir a conversa a portas fechadas do pai com o pretendente, Margarita corre a contar ao amado, desesperada por seu destino. Semanas depois, um cortejo percorre a principal via de Potosí para o casamento mais concorrido entre as famílias bascas locais: o de Margarita Astete de Ulloa e Don Sancho de Mondragón. Aguardam na praça da igreja dois cavaleiros não identificados. Quando chega o cortejo nupcial, e a noiva desce de sua liteira,  os cavaleiros súbitamente fazem carga sobre o grupo e um deles rapta Margarita, que a isso reagiu com estranha felicidade: eram Nicolas Ponce de León e seu amigo Bernardo Cortés. O casal e o amigo fogem sob perseguição de Mondragón e vários cavaleiros bascos. Quando são alcançados ocorre luta na qual Mondragón acaba morto e seus companheiros fogem. Ponce de León acaba bastante ferido e é levado para se recuperar em um refúgio em uma cidade vizinha, aos cuidados de Margarita e Cortés. Lá Margarita e um pálido e ferido Ponce de León procuram um padre e se casam.

Dias depois, com o marido ainda convalescente, o casal e o amigo Cortés são atacados por bascos de Potosí, que vem para mata-los.
Cortés e Ponce de León lutam com vários inimigos quando um primo de Mondragón ataca a própria Margarita, tentando degolar a valente esposa de Nicolás. Margarita, porém, toma a espada do atacante torcendo seu braço, e o mata, surpreendentemente, para em seguida partir com a mesma espada para salvar o debilitado esposo, juntando-se a Bernardo Cortés para matar e fazer correr aos outros atacantes.

Levados mais tarde ao próprio vice-rei, em Lima, para julgamento, o casal e o amigo acabaram por receber o perdão e voltaram após alguns anos a Potosí. Conta a poesia que  Margarita e Ponce de León tiveram 4 filhos, que viveram muito felizes e enriqueceram muito, mesmo sem o apoio de Don Bartolomeu, que afinal os perdoou também. Margarita Astete de Ulloa é nossa Julieta "moura", e nela devem se inspirar todas as mulheres deste valoroso sobrenome Astete.