Para entender a Espanha e o mundo Ibérico da Renascença

A história de uma grandeza esquecida...

Se você teve uma educação convencional sobre história, e alguma leitura, viu filmes ou participou de discussões sobre o passado da Europa, sua riqueza e desenvolvimento, tenho certeza que foi de alguma forma levado a considerar a Espanha do passado como um país de uma forma geral obsoleto e pobre, de um povo místico e inculto, que teve um breve momento de riqueza e poder pela sorte de ter encontrado antes a América e explorado de forma cruel e predatória seus povos e sua riqueza. As melhores condições de desenvolvimento atuais não são suficientes para apagar essa imagem, a fragilidade da economia diante da crise mantém a Espanha como eterna candidata a viver na "periferia" da "verdadeira Europa". A imagem propagada do passado de Portugal permite um pequeno reconhecimento de seu pioneirismo na navegação, mas da mesma forma o apresenta como um país pequeno e pouco significativo em relação ao mundo europeu. Nos oferecem como a exata explicação para o subdesenvolvimento dos nossos países latino-americanos nossa origem colonial, pois os ibéricos seriam adeptos de uma cultura corrupta, exploratória, avessa ao trabalho, apegada ao luxo e a uma religiosidade fanática. Me lembro de professores e outras pessoas cultas que eu conhecia, inclusive meus pais, lamentando que o Nordeste brasileiro não tenha sido definitivamente conquistado e colonizado pelos holandeses quando o invadiram, dizendo que se assim fosse Pernambuco teria sido um lugar rico, assim como toda a região. Da mesma forma, explicavam que a maior riqueza do Sul e do Sudeste do Brasil vinha da sorte de terem tido imigrantes europeus “de verdade”, alemães, italianos e eslavos, não portugueses ou espanhóis; que da mesma forma era por isso que a Argentina era mais rica e culta que o Peru, a Bolívia e outros. Até mesmo o subdesenvolvimento do sul da Itália se atribui à herança corrupta do domínio espanhol sobre o Reino de Nápoles, pergunte a qualquer italiano ligado em história. Os italianos ainda se ressentem da dominação espanhola sobre diversas outra regiões como Gênova, Milão, a Toscana e Turin, para eles um período de ameaça bárbara e militarista à sua elevada cultura, mas se queixam muito menos das incursões francesas.
Todos os filmes de piratas e batalhas marítimas que vi envolvendo ingleses e galeões espanhóis mostram os últimos sendo humilhados, mesmo quando o encontro era entre toscos piratas e a marinha real espanhola. Nos meus livros de história da escola, se passa da Guerra dos cem anos (uma capítulo inteiro do livro, mostrada como o momento do surgimento do estado nação moderno), entre Inglaterra e França, para a expulsão dos mouros da Espanha (só umas linhas) e para as navegações e descobrimentos (umas poucas mais); se falava de Vasco da Gama, Colombo (que era de Gênova, era frizado), Cabral e Américo Vespúcio (outro italiano), ou seja, descobertas sem espanhóis; se falava da destruição dos Astecas e dos Incas pelos toscos e sanguinários conquistadores espanhóis, para depois aprender sobre como os ingleses arrasaram a arrogância espanhola derrotando sua “Invencível Armada”. Este episódio, aliás, é muito mais citado que Lepanto, uma vitória naval contra os turcos, majoritariamente espanhola e tão relevante quanto para os destinos da Europa. Me lembro de irmos então diretamente para o fim da guerra dos 30 anos, onde o mundo já era o que “conhecemos” hoje: hegemonia da França, poder marítimo da Holanda, riqueza dos alemães, até a Suécia aparece para mostrar a sua força, e os derrotados, adivinhem, os espanhóis que haviam sido chamados por seus primos austríacos, os antiquados Habsburgos, monarcas católicos, para defende-los e manter o catolicismo à força. A mais citada batalha com participação espanhola é a derrota para os franceses em Rocroi. Nos mesmos livros discutia-se sobre a Inquisição espanhola, outra crueldade histórica e, daí em diante, a Espanha desaparece dos livros de história brasileiros, para só ser lembrada como uma monarquia que foi enganada e destruída por Napoleão depois de permitir que este atacasse Portugal, e que teve de ver seu império desaparecer pela revolta e independência de suas colônias americanas. Pergunte a qualquer brasileiro de cultura mediana (ou talvez mais que isso) sobre figuras políticas e grandes reis europeus da Renascença e no máximo irá ver citados Henrique VIII e Elizabeth I da Inglaterra, além de Luis XIV da França, os Médici de Florença (mais ricos e famosos do que grandes), Machiavel, cardeais franceses e algum Papa. Só um pequeno grupo de “iniciados” será capaz de citar Carlos I ou Felipe II da Espanha, e somente se você insistir em perguntar se não havia nenhum espanhol digno de nota. Nenhuma palavra será ouvida sobre a engenhosidade política da Rainha Isabela de Castela e mesmo de seu marido, O Rei Fernando de Aragão, que iniciou a expansão espanhola sobre a Europa. Da nobreza portuguesa somente haverá lembrança, e também pelos mais cultos, do Infante Don Henrique (o empreendedor do mar, que era irmão do rei), Don Manuel (que reinava durante a descoberta do Brasil) e Don Sebastião, que desapareceu no deserto da África . Todos vistos como importantes para Portugal e só. É como se o mundo espanhol (e o português) fosse historicamente invisível, não tivesse tido expressão alguma fora dos limites da península Ibérica, entrasse pela porta dos fundos da história na virada da idade moderna e não tivesse deixado nenhuma herança digna de nota além de um monte de repúblicas subdesenvolvidas e um inculto idioma, falado por faxineiras e entregadores de pizza nos guetos “latinos” de Los Angeles e Miami. Não acreditamos também que os europeus e os norte-americanos tenham grande consideração pela história e cultura de Portugal, e sabemos que olham com desconfiança para o Brasil, sua única realização “importante”.
Expansão maritima européia
Todo este conceito negativo me fazia ficar intrigado com alguns fatos: primeiro, se Portugal e a Espanha eram países tão menos ricos e desenvolvidos em relação ao mundo europeu, porque afinal foram praticamente os responsáveis exclusivos pelos descobrimentos e pela expansão do ocidente no século XVI? Por que os navegadores italianos estavam sempre a serviço do Rei de Espanha? Se tivesse sido apenas o acaso a explicação dos descobrimentos, por que os outros países não tomaram parte da exploração da América (nem da África e nem do comércio marítimo com a Ásia) por mais de 100 anos ainda? Seriam tão obedientes assim ao tratado de Tordesilhas, ratificado pelo Papa? Nos séculos XVII e XVIII invadiram parte do Caribe e da América do Norte, de forma permanente, mas por que não fizeram antes? Nunca pensaram em também encontrar locais de exploração de ouro e da prata, como o México e o Peru, ou mesmo as Minas Gerais no Brasil? Enquanto a expedição espanhola de Fernão de Magalhães (português) circundou o globo entre 1519 e 1522, chegando sob o comando final de Sebastián Elcano, o primeiro inglês a fazer algo parecido foi apenas Francis Drake, entre 1577 – 80. Cinquenta e oito anos para repetir uma façanha, e então muito comemorar, não nos diz alguma coisa?
Don Francisco de Orellana, descobridor do Amazonas
Exploradores como Hernando de Soto, Alvaro Nuñes Cabeza de Vaca e Francisco Orellana percorreram milhares de quilometros cada um, separadamente, em explorações em meio à selva, montanhas, rios e florestas, descobrindo entre outras coisas os rios Mississipi e Amazonas e a foz do Iguaçú. Isto tudo antes de 1550. No entanto se alguém fala hoje do protótipo do explorador tende a se lembrar de personagens como David Linvingstone, notável explorador escocês que desbravou o continente africano, mas no século 19! Expedições muito mais tímidas foram antes realizados por franceses no Saara e na África equatorial. e só no século 18. Para todos estes paradoxos só há uma explicação plausível: as nações Ibéricas eram, na época, protagonistas notáveis no mundo europeu, mas a cultura parace fazer questão de esquecer. Um pouco mais de pesquisa e se "descobre" que os portugueses formaram enormes empreendimentos comerciais globais cem anos antes dos holandeses, que os exércitos espanhóis derrotaram os franceses sucessivas vezes, em batalhas como Pavia, San Quintin e Gravelinas, e numa delas  (Pavia) o próprio rei da França, Francisco I (o mesmo que mandou erguer o castelo de Chambord) chegou a ser capturado; que a Holanda e a Bélgica se tornaram possessões espanholas por mais de cem anos, porque Carlos (V do Sacro Império e I da Espanha), neto belga dos Reis Católicos, escolheu a Espanha como centro do seu Império, e apesar de ser o senhor da Borgonha e dos Países Baixos desde o nascimento, foi à guerra contra a França e governou financiado por dinheiro castelhano, mesmo antes de ter qualquer ouro americano. Mesmo tendo herdado todo o Sacro Império Romano Germânico (Áustria, Alemanha, República Tcheca, Hungria e outros países modernos) preferiu terminar sua vida na Espanha, após abdicar pela idade. Deu para seu filho o trono da Espanha e para seu irmão o do Império Germânico.  Não poderia ter feito o contrário? Por que razão um Rei culto e cosmopolita faria questão de relegar à sua descendência um reino teóricamente pobre a atrazado, quando poderia ter mantido sua dinastia em Viena? ou voltar para a Borgonha? Portugal e Castela (especialmente suas regiões mais ao norte) estavam entre as mais urbanizadas regiões da Europa na aurora do século XVI, em padrão só comparável à Itália e aos Países Baixos. Isto não ocorre sem uma explicação que inclua dinamismo econômico e social. Poderíamos elencar muitas outras evidências que apontam para um cenário muito mais desenvolvido e relevante que o habitualmente lembrado hoje em dia, mas me parecem evidências suficientes para se admitir que, realmente, no século XVI, a Península Ibérica viveu seu “período de ouro”, e que isto não era, de forma nenhuma, fruto do acaso.

O mundo Castelhano do fim da idade média

Quando os Astete viviam em lugares como Santo Domingo de La Calzada, Quintanaélez e Tudela Del Duero, essas velhas regiões norte-castelhanas viviam um momento de prosperidade, e povoados iguais salpicavam o mapa do reino, da costa cantábrica à fronteira com a Andaluzia no sul. A idade média viu o Reino de Castela se fortalecer e se organizar em termos administrativos e fiscais, de forma tão eficiente e centralizada que se tornou uma notável exceção durante ocaso do mundo feudal do ocidente europeu. De uma maneira geral os grandes senhores feudais, membros da nobreza imemorial (com raízes no império romano ou nos reinos bárbaros contemporâneos) concentravam o real poder em todos os reinos da Europa. Se o Rei representava o ápice da hierarquia política, sua autoridade era quase nula nas possessões de condes, duques e príncipes vassalos sem que os mesmos o apoiassem. Mesmo a coroa era por vezes objeto de disputa entre as famílias nobres e não raro ocorriam rebeliões ou alianças com inimigos (em tese) do reino. O próprio Rei dependia de suas possessões feudais e delas tirava recursos para a guerra ou para impor suas políticas. Não havia exércitos nacionais, cada grande senhor feudal tinha o seu próprio, em geral soldados profissionais contratados, freqüentemente estrangeiros. Não havia um sentimento nacional, o povo via de regra se sentia alheio à política dos nobres e submisso às decisões dos mesmos, seja de ir à guerra ou de unir seus interesses com outras famílias nobres por meio do casamento. Se havia franceses, isto significava que falavam uma mesma língua e eram súditos de um mesmo rei. Mas esse rei só importava se o Duque, ou o Conde ou seja quem fosse o senhor local jurasse vassalagem a ele. De resto, normandos não tinham nenhum vínculo com os habitantes da Aquitânia ou da Borgonha, apesar de serem todas regiões historicamente francesas e fazerem parte da França moderna. Era como se disséssemos hoje “Latinoamericanos”. Os grandes senhores feudais podiam ser extremamente ricos, mas sua renda não vinha de “impostos” e sim de “direitos”. Eram relativos a arrendamentos de terra, porcentagens de produção, do monopólio de serviços como os moinhos ou armazéns, entre muitos outros. Incidiam principalmente sobre os camponeses e pequenos produtores das ricas regiões rurais e menos sobre os habitantes das cidades, artesãos e comerciantes. As cidades não eram na época local de moradia para a maioria das pessoas, eram apenas centros administrativos, de serviços e comércio, espécie de shopping-centers. Algumas, como no caso da Itália, eram cabeças de estados independentes, no velho conceito de “Cidade-Estado”. No caso de Castela algumas importantes diferenças ocorreram. Em primeiro lugar não havia uma nobreza hereditária forte. O rei era de longe o mais rico e poderoso dos nobres e a absoluta maioria dos súditos vivia em terras de sua jurisdição direta. As pessoas tinham mesmo uma predileção por viver em terras “de realengo”, o que significava que pertenciam ao Rei, e não de “señorio”, pois a figura real estava ligada a um sistema de justiça mais eficiente e ordenado e os cidadãos se sentiam menos assediados pela distante autoridade real do que por um senhor feudal local. Assim eram lugares como a pequena Quintanaélez, onde todos se consideravam “hijosdalgo” e se orgulhavam de pagar impostos diretamente ao Rei, em Burgos. As cidades castelhanas eram o centro da vida do reino e de sua economia. Por meio da instituição dos “fueros”, as principais cidades foram dotadas de relativa autonomia política e administrativa em troca de contribuírem com impostos e se comprometerem numa espécie de “pacto federativo” com a coroa. E quem garantia o status de poder às cidades era o Rei, o único a possuir exércitos de proporção significativa, o suficiente para inibir qualquer rebelião. Os fueros eram também um sistema representativo razoavelmente democrático em suas regiões, e sua obediência à coroa dava ao Rei de Castela um status de chefe de estado mais concreto que o de outros reis contemporâneos. Outro aspecto peculiar era a menor pujança econômica do mundo rural, fonte básica de poder e riqueza do mundo feudal, em relação ao dinamismo das cidades e mesmo em relação às outras zonas agrícolas mais ricas, como na França ou na Alemanha. A economia girava em torno de estruturas dominadas ou reguladas pela coroa e sua organização geral dificultava que senhores de terra crescessem de forma independente. Por exemplo, o maior produto de exportação, com maior valor econômico, era a lã, e esta era produzida em amplas áreas dedicadas à ovinocultura extensiva, controladas por pastores associados numa imensa “cooperativa” chamada Mesta, uma poderosa confraria. Os rebanhos, que antes transitavam livremente por áreas não cultivadas, passaram a depender de estradas mantidas e controladas pela coroa para ir de uma área de pastagem à outra, criando um convívio menos conflitivo com os agricultores. Somente Burgos tinha o monopólio do comércio exterior da lã, e este monopólio era uma concessão da coroa a seus mercadores. Então a cadeia econômica da lã era assim: pastores organizados, que eram tributários e viviam em terras do rei, monopolizavam a produção e a vendiam a comerciantes Burgaleses, que só pagavam impostos ao rei. Se algum nobre tinha terras de propriedade exclusiva, a Mesta não levava seus rebanhos para lá, pois precisaria pagar direitos feudais, e nenhum pastor podia comercializar a lã diretamente com Burgos se não fizesse parte da Mesta. A produção agrícola era ou de subsistência ou inteiramente destinada ao abastecimento das cidades castelhanas, como no caso das férteis terras de “La Bureba” conhecida como o “Celeiro de Castela”, onde estava Quintanaélez. A propriedade, no entanto, era normalmente pequena, sendo que nas regiões do norte chegou a ser comum o minifúndio. Algumas cidades tinham também outro tipo de monopólio, como organizar grandes feiras, caso de Medina del Campoo, novamente por concessão do rei. Assim os poucos nobres tradicionais de Castela viram precocemente o fim do valor da propriedade feudal e se transferiram para as cidades e para a corte, mundos privilegiados do poder da coroa, tornando-se dependentes do rei, de comissões e cargos administrativos numa burocracia cada vez mais complexa e eficiente. Quando a Rainha Isabel de Castela e seu marido o Rei Fernando de Aragão se uniram, quem se fortaleceu definitivamente foi a coroa de Castela, reconhecida como o eixo civilizatório dominante da península. Todos os outros poderes regionais, como os antigos reinos das Astúrias e de Leão ou o Señorio de Vizcaya, da nobreza vasca, já tinham sido absorvidos, e o Reino de Navarra viria em breve a ser conquistado. Somente Portugal resistiu, e foi na península o maior rival além dos árabes. A conquista final de Granada, com a queda e expulsão dos árabes, foi uma verdadeira exibição de poder do estado, com Castela à frente, unida a Aragão. Foi instituído ali um exército permanente, com um forte núcleo “espanhol”, que predominando pela primeira vez sobre o contingente de mercenários ou cavaleiros das ordens religiosas, começou a impingir um caráter patriótico e de uma religiosidade liderada pelo rei, que caracterizaria os exércitos do futuro Império Espanhol e o transformariam numa das nações mais militarizadas de Europa.

A sociedade espanhola diante da Europa e da aventura imperial

Sob todos os pontos de vista podemos dizer que a sociedade castelhana em particular, e ibérica em geral, na aurora do século XVI  vivia um enorme paradoxo: era a mais capaz, entre as sociedades européias de então para dar suporte ao projeto da construção do poderoso Império que veio a se tornar e, ao mesmo tempo, a menos preparada para as conseqüências de tal projeto. A rainha Isabela projetou que Castela deveria concentrar esforços em derrotar de forma definitiva o poder muçulmano no Mediterrâneo, e assim se tornar uma potência baseada no controle de seu comércio. Para muitos castelhanos influentes, tal projeto aliado à exploração paulatina das potenciais riquezas do novo mundo (naquela época ainda desconhecidas) seria uma vocação geopolítica suficiente. Esta visão era perfeitamente compatível com um próspero reino medieval, o que Castela era. Entenda-se por medieval um caráter conservador da cultura aliado a uma baixa mobilidade social, um equilíbrio econômico marcado pela estabilidade e não pela expansão. Havia bem estar social suficiente para que a população crescesse, e ainda havia grandes áreas para ocupação ou repovoamento no sul, de onde a população muçulmana viria mais cedo ou mais tarde a ser expulsa para dar lugar aos cristãos. Havia uma sólida organização fiscal e a coroa tinha um controle efetivo da administração do reino. Pode-se falar dois cenários sociais distintos: “Castilla La Vieja” (a Castela tradicional) e a região da Mancha – Andaluzia ao sul.  Na velha Castela se via um ambiente de intensa e tradicional urbanização. Havia muitos artesãos e pequenos comerciantes à frente de negócios de escopo local e as cidades eram mais prósperas que o campo. A cultura renascentista, com seu viés técnico, filosófico e artístico, era pouco disseminada, porém o nível educacional básico da população comum era bastante satisfatório e a cidadania plena era relativamente acessível. Em muitos lugares ao norte, como nas terras onde viviam os Astete, a maioria da população era de famílias tradicionais locais e em certas comunidades, como Quitanaélez, todos se consideravam Hidalgos. Nas grandes cidades castelhanas, porém, faltava o clima cosmopolita, de intercambio cultural e comercial que marcava cidades similares do resto da Europa. A burguesia, classe econômica de tradição empreendedora, associada ao comércio e à diversificação industrial, era comparativamente pequena, havia poucos ricos e quase todos tinham por traz de suas fortunas os privilégios da nobreza. Apesar da tradição de séculos de viajantes peregrinos do caminho de Santiago, que fomentou o desenvolvimento de tantas cidades, como Burgos, e marcou o contato com o mundo exterior, Castela estava muito à margem dos caminhos do intenso intercambio comercial que marcou o desenvolvimento da Europa tradicional. Havia feiras importantíssimas como em Medina Del Campoo, Vascos e Burgaleses tinham negócios e abriam escritórios nos grandes centros comerciais Flamencos, as Universidades como Salamanca e Alcalá de Henares recebiam intelectuais de todo o mundo, mas o mundo do castelhano comum era o do pequeno-burguês da cidade e do pequeno produtor rural ou pastor do campo, e era profundamente provinciano, com um mínimo contato com o estrangeiro. Por toda Castela a geografia é acidentada, são raras as planícies, são poucos os rios e quase nenhum é navegável o suficiente para ter fomentado um comércio fluvial significativo. Transportar cargas pelo território era um desafio. Entre Castela, Navarra, Aragão e a próspera França ainda temos os Pirineus. Ao norte dessas montanhas a Europa era um cenário de terras férteis e planas, recortadas por rios que eram verdadeiras vias fluviais, percorriam longas distancias, atravessavam países e desaguavam no mar. Isto sem falar nas estradas e na infra-estrutura herdada do antigo império romano, conservada e ampliada pelas sociedades medievais que o substituíram. O comércio se dava inicialmente pelo intercambio das cidades estado italianas com o interior da Europa, sendo os italianos responsáveis pela distribuição dos produtos orientais nesse continente. Depois, pelo intenso desenvolvimento das cidades Hanseáticas, criou-se um grande fluxo de mercadorias, pessoas e cultura entre o noroeste da Europa, o leste da Ilhas britânicas, os estados Germânicos e do mar báltico e o mundo mediterrâneo (com as cidades italianas como seu epicentro). Lugares como a Russia e a península Ibérica estavam literalmente fora da rota. Ao sul da velha Castela, a Andaluzia era um ambiente de expansão econômica e da aristocracia. Fruto dos útimos momentos de reconquista, a Andaluzia foi o local onde os nobres espanhóis mais prosperaram, ao receberem imensas  possessões feudais como retribuição por sua contribuição nas campanhas contra os reinos árabes. Alí comandaram o repovoamento cristão e o estabelecimento da autoridade castelhana. A permanência da população árabe determinou a preservação da produtividade agrícola e da tecnologia de irrigação. O envolvimento com o comércio mediterrâneo impulsionava cidades como Sevilha de forma notável. Se havia ricos na espanha, eles eram no fim do século XV principalmente andaluzes e membros de uma nobreza não tradicional. O maior desafio dessa sociedade era derrotar os mouros na penísula e no norte da áfrica e dominar o comércio do mar Mediterrâneo.


A economia espanhola no século XVI
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Parece paradoxal, mas houve extrema pobreza na população castelhana em um momento, no século XVI, caracterizado pela prosperidade econômica. Faremos uma tentativa de explicar o paradoxo e descrever as características da crise econômica que ofuscou o brilho do Império Espanhol. Para tanto recorremos em boa parte ao texto do blogueiro espanhol Javier Álvarez, do blog Edad de Oro.
Não à toa, os anos 1500 representam um século de expansão para a Espanha e em particular para Castela. O processo de repovoamento que acompanhou e, em alguns casos, sucedeu a Reconquista, determinou um aumento acentuado na produção agrícola já desde o século XV. Isto se deu apesar do domínio dos modelos “imobilistas” de propriedade , tais como primogenitura, e da baixa cobertura de irrigação. Uma vez superaradas as conseqüências da Peste Negra, o crescimento demográfico da Espanha se estabilizou em torno de uma média de cerca de seis de 0,6 % ao ano, ou seja, o dobro da média de outros países europeus. A pecuária, graças aos privilégios antigos da Mesta, viveu expansão semelhante ao longo e após o século XV, chegando virtualmente a se triplicar o rebanho ovino. A característica do século XVI foi, no entanto, o desenvolvimento progressivo das cidades e, conseqüentemente, indústria artesanal, comércio e serviços. Apesar do dimamismo e efervescência comercial de muitas cidades castelhanas parece, no entanto, que o balanço de pagamentos foi no século XVI deficitário. A Espanha exportou, em geral, matérias-primas como lã e ferro e importou produtos manufaturados de outros países europeus. Diante do grave problema inflacionário que ocorreria a seguir, o equilíbrio econômico se revelou frágil. Esta possibilidade não estava clara desde o início. No século XV os Reis Católicos introduziram um princípio de racionalidade no sistema monetário de Castela, que, aliás, manteve o valor em dinheiro, isto é, o peso em ouro, prata e outros metais preciosos em suas unidades. A sua contribuição máxima a partir deste ponto, foi a introdução do ducado que se tornou muito cedo no referencial comum da economia castelhana. A inflação no século seguinte, apesar de um aumento da taxa moderado, de cerca de dois por cento a cada ano, tornou-se o mal do século e levou a uma "revolução dos preços" que, sem dúvida, está na raiz do aumento da mendicancia que se testemunhou de forma dramática pela literatura da época. Podemos apontar causas estruturais e monetárias para o fenômeno. Do ponto de vista estrutural constata-se que o equilíbrio entre a demanda e a oferta de bens de consumo ficava restrito pelas dificuldades logísticas de distribuição e circulação de mercadorias, especialmente num país de relevo acidentado, com poucos rios navegáveis que percorressem o interior e com uma notória carência de estradas, pontes e outros equipamentos viários. Se o mundo medieval espanhol em geral, e castelhano em particular, se caracterizou por cidades relativamente autosuficientes em termos de comércio, produção de bens e serviços, isto não resistiu a um aquecimento do consumo a medida que as comunidades urbanas cresciam e suas sociedades se sofisticavam. Ficou evidente que as relações de comércio eram insuficientes, tanto internamente como com o exterior. As caracterísicas estáticas da estrutura social, especialmente no consolidado norte espanhol, tiveram força negativa para o empreendedorismo e de uma maneira geral homens e famílias insatisfeitos com seus horizontes locais optaram por migrar, seja para o sul da península, seja para a América, em busca de novas condições de crescimento. A falta de uma cultura industrial mais diversificada, como ocorria por exemplo nos Países Baixos, se explicava pela baixa tradição burguesa e fazia imensa falta para reverter a tendencia à estagnação de certas comunidades. O equilíbrio fiscal da coroa foi definitivamente abalado pelos gastos militares do século XVI. Marcada por um comportamento “frugal” em termos administrativos, e avessa a estravagâncias, a corte dos Trastámara (a dinastia da qual descendia Isabel I) contrastava com as outras realezas européias. Havia antes um clima até mesmo vetusto na alta nobreza castelhana, com um pano de fundo de profunda religiosidade. Disto decorre que os gastos da coroa raramente extrapolavam o orçamento disponível. Mesmo na guerra com Granada, as dívidas contraídas foram relativamente equilibradas, em parte pela marcante participação de particulares, especialmente nobres ricos do sul que ajudaram a financiar o esforço bélico. A entrada em cena da nova dinastia dos Habsburgo não alterou em excesso esta característica mas trouxe uma única e fatal prodigalidade: gastos com esforços de guerra, proporcionais ao maior comprometimento geopolítico da nova casa dominante. Desde o reinado de Carlos I, um exército profissional de grandes proporções esteve sempre ativo e em diversas ocasiões seu financiamento bem como a contratação de tropas mercenárias suplementares gerou endividamento. Uma pressão de consumo em alta, uma baixa capacidade e crescimento e diversificação da produção, dependência de importações, todo o cenário estava pronto para potencializar o dano que a entrada de metais preciosos viria a causar. É preciso ressaltar estas condições locais pois o efeito inflacionário não seria inevitável, a princípio. Os metais preciosos trazidos da América nunca representaram mais que vinte por cento do produto interno bruto da coroa. Porém, esta era uma coroa edividada, e a importação do ouro e da prata, rapidamente usados para financiar seus gastos gerou um aumento da base monetária sem o devido lastro econômico. O crédito do Império aumentou, especialmente com os financistas de Gênova, e o Rei passou a viver uma rotina de contratação de grandes financiamentos, com a ampliação do efeito dos juros e pagamento com metais preciosos. Em determinado momento a inflação se instalou, gerando aumento irracional dos custos de produção internos, perda de competitividade das exportações, empobrecimento da população e acentuação da desigualdade social, colapso de certas cadeias econômicas como a da lã, redução da arrecadação pública e acúmulo de pendências financeiras internacionais. Se por um lado o sul da península, a Andaluzia e especialmente Sevilha viviam um período de plena expansão econômica, a economia do norte se desorganizava e deteriorava, e era grande a dependência da coroa destas comunidades, muito mais inseridas no antigo regime fiscal castelhano.

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